terça-feira, janeiro 17, 2006

A felicidade da fé x A melancolia do saber


Quando escrevi isso, preferi não publicar, porque percebi que havia escrito em pleno 24 de dezembro. Mas gosto do tema - infelizmente gosto mais do que posso. Espero que nada seja interpretado erradamente.


Os juízes americanos arbitram, desde o final da década de 60 do século passado, o debate nacional, travado por evolucionistas e criacionistas, sobre o conceito de "Design Inteligente". Resumindo muito humildemente – há gente muito mais interessada e competente pra isso – o imbróglio, posso apenas dizer que os criacionistas, ou seja, todos os cidadãos formados e doutrinados no Cristianismo (por exemplo), cansaram de lutar contra a ciência da Teoria da Evolução, historicamente usada nas escolas americanas por ser extensamente embasada em fatos e comprovações científicas.

Insistir em enfiar goela abaixo dos alunos que o mundo existe há apenas 6 mil anos, que geólogos, paleontólogos, historiadores e arqueólogos, além de biólogos, matemáticos, físicos, químicos e toda a torcida do Flamengo esteja errada não colava mais. Então foi criado o conceito do D.I., com o qual os fundamentalistas cristãos pretendiam provar cientificamente – sem provas científicas – que a complexidade e a beleza da vida na Terra só podiam vir de um ser superior. O cinismo chegava às raias da admissão de que essa força superior poderia ser, inclusive, uma civilização alienígena. Em português claro: maquiou-se a idéia de Adão, Eva, a Maçã e a Serpente Malvada com um véu científico bem fuleiro, e se vendeu essa nova “ciência” aos estudantes americanos.

O ensino da evolução das espécies, essa idéia demoníaca, foi proibido durante boa parte do século XX nos Estados Unidos, sabia? Só em 1968 a Suprema Corte entendeu que a proibição era inconstitucional, pois tinha motivação expressamente religiosa. A constituição americana separa nitidamente o que é Estado do que é Igreja, ou seja, imagens, orações e ensino religioso são – ou deveriam ser – coisas proibidas (esses Founding Fathers eram uns frouxos mesmo...) nas escolas americanas. Nesse bojo ia o Design Inteligente, ensino religioso, ou mais precisamente “desensino” científico, disfarçado de ensino de Biologia.

Agora, depois que 11 pais processaram uma escola da Pensilvânia por ensinar Religião no lugar de Biologia, um juiz federal baniu o ensino do D.I. no estado. O motivo é simples: ensinar nas escolas que o universo só pode ter sido criado por uma inteligência superior (um desenhista divino) não é ensinar, é doutrinar. Atribuir fatos com comprovação científica a seres extraterrenos era sacanagem demais.

É claro, o assunto é delicioso, e não merece uma análise preocupada com limites de texto ou técnicas para uma escrita estimulante. Sou sempre carinhosamente chamado de ateu. Cético, aliás, porque chamar, hoje em dia, um ateu de ateu é como chamar um cego de cego ou um leproso de leproso. Os outrora ateus até já se autodenominam Brights. Um ateu hoje prefere ser chamado de um bright, uma pessoa que enxerga o mundo de forma mais, digamos, naturalista (“materialista” também não soa bem nesses tempos de tamanha elevação espiritual humana). E como as melhores ironias são as involuntárias, chega a ser gostoso saber que até os ateus já se dividem em denominações...

Contra tudo o que aceito como verdade, provada, documentada e analisada, sou um crente – no sentido amplo da palavra, não no sentido evangélico. O pouco que sei me impele a não acreditar em Deus, mas tenho fé que Ele exista. Minha formação religiosa é razoável, e não simpatizo com a idéia de ser pura matéria, que vai deitar de volta um dia e desfazer-se em fluidos putrefatos.

Aprendi a crer - eis a beleza e a melancolia da fé - que alguém muito grande, muito justo e muito poderoso está por aí, em algum lugar. Aprendi a louvar a Deus, nas lições dominicais que tive durante toda a infância. Aprendi que a fé, a crença naquilo que não se pode ver, independe de seu objeto de culto. Entre as segundas e as sextas freqüentei uma escola - batista! -, onde aprendi que evoluímos de outras espécies, que a terra tem cerca de 6 bilhões de anos de idade e que há 700 mil anos a Europa já era destino turístico muito procurado. A diretora da escola freqüentava a mesma igreja que eu, e é tentadora a idéia de achar que toda essa calmaria social entre o que aprendemos como ciência e o que aprendemos como crença é puro excesso de tolerância, ou que há paradoxos na vida que é melhor não questionar. Por isso nunca tive a coragem de perguntar a ninguém, em sala de aula, na igreja ou em casa, por que todo mundo aceitava ouvir coisas tão distintas, tão passivamente. Nunca tive a resposta, it is quite obvious. Quem teria respondido? O que teriam respondido? Não sei, só sei que ninguém me convenceria, com qualquer resposta, por um motivo simples: nossas escolas não são laicas como deveriam ser; nossos templos não são religiosos como deveriam ser. Exercer a fé é abdicar da lógica, é ter a humildade de assumir a pequenez desse corpo.

Ter fé é – e não há como dizer isso sem parecer irônico – a forma mais sublime, nobre e bela de se entregar à ignorância e ao medo. É é impressionante como a ignorância e o medo nutrem a fé, tanto que não há ateus inábeis na defesa de sua horrorosa falta de fé. O problema é que não há prazer na descoberta do vazio, e fica fácil preferir a bela alienação à melancólica realidade. Não há beleza nalguém que desacredita em tudo, e que posa como um jogador de videogame, que acabou de zerar o jogo e assiste, arrogantemente, a morte dos competidores crentes nas fases anteriores. O ateu é feliz como o pessimista: regozija-se quando as coisas dão certo e quando dão errado. O ateu não torce por nada nem por ninguém. É humilde e insuportavelmente superior, motivo pelo qual o ateísmo nunca foi uma religião muito séria pra mim. Eu não acredito em ateus, pelo menos os ativistas. Ter fé ajuda a trazer felicidade (ou inibe um pouco a infelicidade), ainda que seja apenas um placebo para aliviar as dores seculares do mundo. Paciência.

No fim das contas pouco importará quem estava certo, os ateus ou os crentes. Isso é mero debate de idéias - e um dos poucos assuntos que conheço que não combinam com uma garrafa de Logan. O que terá importado, eu tenho fé nisso, é como cada um terá vivido essa vida. Até onde sei, ninguém veio contar se há outra.

Mas talvez eu esteja sendo apenas cretino, ainda agarrado à barra da saia de Deus, Jesus, Céu e Inferno, em vez de, sem culpa, abrir uma garrafa de vinho e curtir a sensação de que é isso, this is it. Eu simplesmente acredito. Por favor não me peça para explicar por quê.