quarta-feira, outubro 26, 2005

Cleptomaníaca que rouba cleptomaníaca...



Fernando Paulino Neto, do site NoMinimo, faz reportagem sobre um episódio no mínimo irônico. Lucy Mafra, atriz experiente em papéis sem destaque em novelas da Globo, é acusada de roubar R$ 300,00 de Christiane Torloni. Veja a matéria abaixo:

Enfim, célebre

Fernando Paulino Neto

25.10.2005 | Lucy Mafra é atriz. Trabalhou em 19 novelas, cinco minisséries, filmes, peças de teatro, posou nua para a capa do “Pasquim” na década de 70, tem 29 anos de carreira e 50 de vida. Ninguém nunca deu a mínima para ela. Nenhum jornalista telefonou para a sua casa, nunca foi fotografada numa noite de estréia, jamais protagonizou uma novela na TV, mas, do dia para a noite, virou uma celebridade. O que ela fez? Nada, pelo menos até prova em contrário.

Mas, do nada, Lucy foi colocada no redemoinho de uma fofoca de bastidores da novela “América”, em que interpretava (ou será que ainda interpretará?) quase despercebida Claudete, a vizinha de Islene (Paula Burlamaqui) que cuida de Flor (Bruna Marquesini). Alguém roubou R$ 300 do escaninho de Christiane Torloni, que vive a cleptomaníaca Haydée, nos camarins do Projac, o reino do faz-de-conta da TV Globo. Uma camareira viu Lucy mexendo no escaninho de baixo (o dela) e a chave do armário da Torloni balançando. Foi o que bastou: dentro do Projac, ela passou a ser olhada de modo atravessado. Logo, logo a coisa vazou para os jornais.

Uma colega do “núcleo Vila Isabel”, aquele lugar onde se samba até em cerimônia de casamento, ligou para a colunista da “Folha de S. Paulo”, Mônica Bergamo, e soprou o nome de Lucy. Pronto. Tudo mudou. No sábado, pouco depois do meio-dia, um amigo de Lucy contabilizava cerca de 850 menções a seu nome no Google, o mais famoso site de busca Internet, citando o caso do roubo. Antes, seu nome aparecia de maneira discreta e esparsa, quase sempre como referência a seu trabalho com o grupo teatral carioca Tá na Rua, liderado por Amir Haddad, ou no meio das listas de “elenco de apoio” de novelas e minisséries.

Agora, transformada numa espécie de “campeã de audiência do Google” e citada por todos os sites de fofoca televisiva, Lucy tem pela primeira vez o reconhecimento público. Não tem sido bom para ela. “Outro dia, eu estava no frescão e uma senhora começou a me xingar”, conta. Andando pela Lapa, teve outra surpresa. Um conhecido e vizinho em uma das diversas oficinas de teatro e grupos de trabalho que ocupam sobrados do início do século passado no bairro não teve dúvida: ao vê-la passar em direção à sede do Tá Na Rua, gritou seu nome bem alto, abriu uma mão, fincou um polegar na palma e, com os dedos estendidos, fez um círculo completo no gesto tão característico. Alguns colegas de trabalho também ficaram contra ela. “Teve gente que disse que eu posei nua e que eu fumo maconha, só como forma de me denegrir. Mas sou só eu?” – pergunta a nova celebridade nacional.

Solidariedade punk

Indignada, Lucy desabafa: “Me sinto um deputado do PT. Hoje, no Brasil, estamos com uma tolerância muito baixo ao roubo, todo mundo fica muito zangado. E, mesmo depois que tudo passar, fica o estigma.” É verdade que ela encontrou solidariedade também entre seus companheiros de Globo. Cita Paula Burlamaqui, com quem contracenava na novela, e Renata Sorrah entre as colegas que lhe deram apoio neste momento difícil e confessa: “Se eu tivesse sido flagrada com a mão na mochila de alguém, pedia desculpas, saía de fininho e ia vender artesanato no Chile, porque eu sou uma atriz. E não sei fazer outra coisa”.

Enquanto recebia a reportagem de NoMínimo, no horário do almoço de sábado, Lucy leu uma mensagem de texto em seu celular. Dizia: “E aí, Lucy, você pode me dizer quem é a cleptomaníaca do núcleo Vila Ezabel (assim mesmo) de ‘América’?” E ela conhece o curioso dono do telefone.

Nem tudo é tristeza, porém. Da rua pode vir também a solidariedade. “Eu tava andando pela Lapa, às oito da manhã, e um grupo de punks malucos, virados da noite, gritou pra mim: ‘Tamo contigo!’”. Lucy diz que está tentando “separar o joio do trigo” – ou “os verdadeiros amigos de quem prefere se afastar em um momento ruim”.

Nos primeiros dias do episódio, ela ficou quieta, aguardando uma reação da Globo. “Esperava uma palavra, que me apoiassem, aumentassem meu papel, sei lá, mas eles só falavam para eu desmentir tudo”, afirma. Depois, passou pelo momento de maior tristeza: “Chorei muito, fui me agarrar na saia da minha mãe lá em Volta Redonda. Foi uma maldade que fizeram, minha mãe tem mais de 70 anos, ficou vendo isso tudo e ainda perguntou se eu ia voltar a trabalhar na novela.”.

Foi então que resolveu partir para a ação. Lucy não hesita em afirmar o que pretende tirar de bom de todo este episódio: “Dinheiro.” Para isso, contratou o “advogado das estrelas”, Sylvio Guerra, especializado em processos de artistas contra seus empregadores, jornais e revistas. “Teve um camera man do Faustão que foi zoado no ar, chamado de veado e levou R$ 500 mil do Faustão e R$ 500 mil da Globo. É um Big Brother”, sonha.

Sylvio Guerra entrou com uma interpelação judicial para que a Globo informe se afastou Lucy da novela e, em caso positivo, qual a razão disso, já que ela está bem de saúde e tem contrato em vigência. Dependendo da resposta, ele entrará com uma ação de perdas e danos. Lucy pretende processar também a colega que a entregou à jornalista. Jura que sabe o nome, mas não revela - pelo menos, até buscar reparação na Justiça.

Da Globo para o SBT

A Central Globo de Comunicação informa, por e-mail, que “nunca fez qualquer acusação contra a atriz ou contra quem quer que seja. Lucy Mafra é contratada por obra certa, tem contrato até o fim da novela e o contrato será cumprido. O personagem saiu da trama por razões dramatúrgicas, já que no final da novela personagens de apoio perdem força. A atriz, contudo, continua no elenco, recebendo até o fim do contrato.”

No entanto, Lucy tinha falas previstas nos capítulos 187, 188 e 190, que já foram ao ar, e não foi chamada para gravar. O roteiro com as falas da personagem Claudete nestes capítulos faz parte das provas que Guerra pretende apresentar à Justiça.

Guerra não é um advogado barato. Depois de uma negociação, chegaram no valor mínimo pelo qual ele estaria disposto a defendê-la: R$ 10 mil. Lucy não tinha esse dinheiro. O próprio advogado deu a solução. Depois de uma entrevista coletiva no início da semana passada, no escritório do advogado, Lucy se calou e só voltou a falar no “Programa do Ratinho”, no SBT, na quinta-feira. Pela participação, recebeu um cachê de R$ 10 mil. Entregou tudo ao advogado.

Gostou da experiência. “O Ratinho foi um gentleman. Me respeitou no programa dele. Não teve baixaria”, afirma. Ela aproveitou para pedir, no ar, emprego no SBT. Não é que deu certo? Foi chamada para ficar mais um dia em São Paulo e negociar a mudança. Como seu contrato com a Globo termina no dia 15 de novembro e “não deve haver interesse em renovação”, está propensa a aceitar a proposta da emissora paulista. “Eles me querem. Fiquei famosa”, ironiza.

A atriz nunca se importou de fazer papéis pequenos. “Dava pra tirar um salário decente e me permitia fazer o que mais gosto, que é trabalhar em teatro”, diz. Ela está há 20 anos no Tá Na Rua. E o chefe da trupe, Amir Haddad, afirma categórico: “Aqui, nesse tempo todo, ela nunca roubou nada.” Amir conheceu Lucy na época em que ela apareceu no “Pasquim” e recorda: “Era uma cover-girl muito bonita e pintava o cabelo. Eu disse a ela: ‘Vem trabalhar comigo que eu quero conhecer a cor do seu cabelo.’ Ela veio e, um tempo depois, me disse: ‘O meu cabelo é esse.’ Lucy é uma pessoa muito interessante.”

Haddad fica apavorado com o que a antiga colaboradora está passando: “O que me assusta é esse linchamento sistemático que a imprensa faz, com base na liberdade de imprensa. Está sempre demolindo. Hoje, tem um linchamento por dia. É uma Imprensa adjetiva e dramática, não é reflexiva. Este modo de tratar as coisas. emocionando e não informando, é a mãe de todas as formas de fascismo.”

Lucy prefere pensar que pode estar desconstruindo tudo para iniciar um novo tempo. “Sou muito apegada a Nossa Senhora Aparecida. Agora que estou fazendo 50 anos, enchi o saco da santa para ela me ajudar no fim do meu contrato com a Globo. Ela deve ter dito: ‘Tá, eu vou ajudar, mas você não está esperando que vá acontecer um milagre.’ Quem sabe, tudo isso não é trabalho de Nossa Senhora e, no fim, vai ficar tudo pra melhor”, diz, sorrindo.

E, logo depois, entristece o semblante e afirma: “Ainda não estou bem”.