terça-feira, outubro 18, 2005

Só porque é ele


Sou um democrata. Ribamar, meu ídolo, é do SIM. Ok, ninguém é perfeito (ele é até petista). Mas como sou - ou quero ser - essa metamorfose ambulante, estou disposto a virar a casaca do NÃO para o SIM assim que ouvir o primeiro argumento que valha. Não foi esse, mas vale dar uma conferida. Ei-lo.


SE EU COZINHO, É MEU?
José Ribamar Bessa Freire

16/10/2005 - Diário do Amazonas

O bairro de Aparecida está numa sinuca de bico . Seus moradores, confusos e angustiados, não sabem como enfrentar o referendo popular . Se responderem ‘ não ', contrariam direitos individuais . Se disserem ‘ sim ', abdicam de princípios sagrados e, dessa forma , acabam dando aquilo que o Nêgo Valdir deu: a própria honra . Muitos preferem fugir pela tangente , dizendo: ‘ talvez ', ‘depende', ‘sei lá '. Mas essas alternativas não existem no referendo . Não há meio termo. É ‘ preto ' ou é ‘ branco '. Não tem ‘ cinza '. De todo jeito , a gente se ferra . Com o ‘ sim ', é créu. Com o ‘ não ', é crau. A diferença é apenas de uma mísera vogal?

Manaus viveu drama similar no referendo do peixe que aconteceu há 50 anos . Na época , desnorteado, busquei orientação com tia Eulália. Ela era freira , da Congregação das Adoradoras do Preciosissimo Sangue . Uma santa . Estava mais perto do céu do que eu , pecador empedernido . Quem sabe, a titia podia me iluminar sobre os enigmas do mundo e da vida ? Era domingo , dia de visita ao convento , ali na av. Constantino Nery, bem em frente à igreja de São Geraldo. Cheguei, pedi a benção – benstia – e, à queima roupa , fui logo fazendo a pergunta do referendo do peixe que atormentava, então , os amazonenses .

- Titia , se eu pesco um peixe , se eu cozinho, é meu ?

Minha mãe ralhou: “ Deixa de ser abestado, menino ”. Mas tia Eulália me levou a sério . Não respondeu de chofre . Primeiro , me abençoou: - “ Deus te faça feliz ”. Naquela época , sobrinho pedia benção, tia abençoava e a gente falava “de chofre ”. Hoje , é a maior esculhambação . Minha sobrinha Ana Paula, por exemplo , não me concede sequer a graça do título de ‘ tio ', me trata simplesmente de ‘Beibe', sem qualquer cerimônia . Nunca , nunquinha, me pediu a benção. Essa é mágoa que guardo no fundo do meu coração . Sei que é uma questão familiar , mas preciso compartilhar esse sofrimento com os leitores .



Digo não ao não

Mas onde é mesmo que eu estava? Ah, na titia . Depois de me abençoar , ela coçou a cabeça . Não , pera lá ! Minto! A cena , com certeza , exige uma coçada reflexiva . No entanto , as freiras usavam uma espécie de capacete de plástico , coberto por véu branco , que não deixava coçar a cabeça . Se fosse homem , titia coçaria outra coisa . Acabou mesmo coçando o queixo , enquanto repetia baixinho, quase rezando: “Se eu pesco um peixe , se eu cozinho, é meu ?” Aí , como se descobrisse a pólvora , sentenciou: -“É seu , meu sobrinho . É seu ”. Fez uma pausa e confirmou inapelável : - “ Sim , meu sobrinho , é seu . Indubitavelmente, é seu ”.

Meio século depois , Tia Eulália – a inocente - está morta , mas sua lição orienta o rumo que devo tomar nesse plebiscito nacional sobre o desarmamento , cuja pergunta também é capciosa : "O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?”. Há uma evidente manipulação da linguagem , como no referendo do peixe . Quem responder ‘ sim ', está querendo dizer “ não quero que vendam armas ”. Quem marcar ‘ não ', diz o contrário : “ sim , eu quero que a venda seja permitida”. Está tudo de revestrés. O ‘ não ', que é negativo , libera. Já o ‘ sim ', que tem conotação positiva , proíbe. Eraste! Eu , einh!

Como se isso não bastasse, os partidários de um lado e de outro usam o horário da propaganda política obrigatória na rádio e na televisão para confundir ainda mais . Não discutem princípios , nem esclarecem dúvidas , querem apenas vender ‘o não ' ou o ‘ sim ', usando uma linguagem marqueteira abjeta , como se estivessem anunciando sabão em pó , margarina , telefone celular ou um deputado qualquer do PFL (viche! viche!). Não pretendem nos fazer pensar e refletir , querem apenas nos obrigar a aderir .

A turma do ‘ não ', em vez de provar porque é bom vender arma e munição adoidado , faz terrorismo , jurando que se o ‘ sim ' ganhar , o povão vai se ferrar , o mercado negro de armas vai crescer , o Estado ficará sem o controle sobre revólveres e pistolas , os bandidos vão invadir nossas casas , as empresas de segurança privada vão faturar , enfim , fazendeiros , grandes empresários , lideres políticos , juizes e advogados famosos continuarão a se armar legalmente , enquanto a plebe ficará desarmada. Como se a plebe , hoje , estivesse armada .

Esse é o argumento da revista VEJA, que apresentou sete razões – sete é conta de mentiroso – para provar que é bom vender armas e munições e que , portanto , os leitores devem votar ‘ não '. Quase todas as razões são terroristas , tentam nos amedrontar e desestabilizar , jurando que os bandidos vão se sentir mais seguros para assaltar e invadir as casas , já que sabem que seus proprietários estão desarmados. A revista invoca ainda , cinicamente, o princípio da liberdade : por que impedir o cidadão , que paga impostos , de comprar uma arma e de exercer com ela o direito de legítima defesa ? Depois da novela ‘O direito de nascer ', VEJA roteiriza ‘O direito de matar '.



Digo sim ao sim

O meu amigo Rubem Rola , que mora na Bandeira Branca , discorda da VEJA. Ele e sua mãe Marina votam ‘ sim ' nos dois referendos – o do peixe e o do desarmamento . São pequenos empresários , donos da Rolamar Produtos Alimentícios Ltda.- que fabrica broas . Sua empresa familiar não será prejudicada pelo resultado da consulta popular . Estão conscientes de que os únicos que vão lucrar com o ‘ não ' são os fabricantes e comerciantes de armas . Para eles , a questão é saber se queremos mudar ou se queremos que a situação fique como está. Quem vota ‘ não ', quer que fique como está. Quem vota ‘ sim ‘ quer mudar .

Rubem e Marina são produtores de broas e não de armas. Querem mudança , e por isso votam ‘ sim '. Não desejam ficar do mesmo lado do pistoleiro Bolsonaro e do porquinho Fleury. Raciocinam da seguinte forma : hoje é permitido vender armas e a situação está – com o perdão da palavra – uma merda. Portanto , precisamos mudar . O ‘ sim ' significa mudança , não necessariamente para melhor , é certo . Por isso , depois de proibir a comercialização , devemos pressionar o governo para melhorar a segurança pública . De qualquer forma , o que não pode é ficar como está.

Todos nós sabemos que não haverá diminuição da violência no Brasil, enquanto houver desemprego, miséria , ignorância , fome , doença e corrupção . Votamos no ‘ sim ', sem esperar milagres , mas acreditando que a sociedade com a qual sonhamos não pode ser construída com cada um organizando individualmente sua defesa pessoal . Essa não é a sociedade que quero para meus filhos e netos: um aglomerado de pistoleiros onde cada um é responsável por sua segurança , no lugar de uma comunidade de cidadãos, cuja segurança é responsabilidade do Estado. É preciso ter coragem para não tirar o fiofó da reta e dizer ‘ sim ', como fizeram tia Eulália, Rubem Rola e Marina . Com o ‘sim', sinalizamos a sociedade que queremos, onde a segurança n&atild! e;o é um problema individual e privado, mas é uma questão de política pública.

Quanto ao referendo do peixe , não há nada a temer , leitor (a). Responde “ sim ”, corajosamente , porque o peixe é de quem o pescou e o cozinhou. Se eu cozinho, é meu , indubitavelmente. Não podemos negar isso , só por causa de um joguinho de palavras . Se tens medo de ficar como o Nego Valdir, exige a tradução da pergunta ao inglês : “If I fish a fish, if I cook it, is it mine?”. Ai, podes responder “yes”, sem comprometer tua honra . Afinal , se o Berinho, secretário de Cultura , colocou avisos em inglês para orientar os cavalos das charretes da praça São Sebastião, por que não podemos traduzir aos humanos a pergunta de um referendo ?

P.S. - Por falar em inglês , recebi a seguinte notícia , que é uma forte razão adicional para votar no ‘ sim ': “On October the 11th at 12:35 a.m. was born the princess Maria Rafaela do Espirito Santo Fontoura Nogueira , weighing 3,359 kg and measuring 51 cm. Her Highness and Her Majesty are very well. (assinado) The King”. Agradeço ainda ao José Amaro Júnior e à Ana Paula, pela sugestão do tema da crônica de hoje .