Realiza. Você entra no restaurante. Encontra aquelas mesas enormes, enfileiradas ao estilo linha de produção, mesinha com mesinha num desenho lógico, divididas em empresas, numa cena que lembra (visualmente também) aquelas tomadas aéreas dos depósitos de Auschwitz. O restaurante é o seu preferido, mas a sua mesa preferida não existe mais, está perdida num mar de toalhas brancas, salpicadas de celulares, crachás e chaves de carro. O garçom que sempre lhe atende mal lhe atende, e lhe conduz a uma mesinha de canto, improvisada perto da porta, espaço reservado nesta época aos fumantes, aos portadores de doenças contagiosas e aos desavisados que ali entram sozinhos. Você releva ao ver que os garçons estão todos assim, semblantes transtornados, com aquelas bandejas repletas de refrigerante e cerveja, ziguezagueando entre as mesas numa rebolativa marcha atlética em alta rotação. É, o termo é chulo, tire as crianças da sala: você está numa “confraternização de final de ano”.
Claro, você, incauto e desatento cidadão, não participa dessas coisas, ou porque não trabalha ou porque mantém princípios pessoais intactos contra visitas ao inferno. Bom, o fato é que você precisa almoçar, e hoje havia decidido comer aquele rodízio de churrasco. Então é ali que você fica. Por pura curiosidade mórbida, decide assistir àquilo tudo.
Às 12:00, 12:30, tudo ainda está em perfeita ordem - tudo falso. A chegada é civilizada e há uma timidez coletiva no ar, como se aquelas centenas de pessoas estivessem todas na sala de espera do consultório médico, constrangidamente lendo uma revista que, de tão atual, ainda conta os bastidores do casamento eterno do ano, entre Adriane Galisteu e Roberto Justus.
Mas é fim de ano, e o pandemônio vai começar. CDs e mais CDs, embrulhadinhos com papel de presente da loja, começam a cruzar as mesas, entre petiscos de lingüiça e copos de cerveja. CDs dispensam o trabalhão que dá conhecer os gostos do colega, e com as brasileiríssimas listinhas, cada um ganha exatamente o que quer. Outra vantagem do amigo secreto de empresa é que você (você não, eles!) sempre tem a opção de fazer como o presidente, e comprar aquele lançamento da dupla-solo Bruno & Marrone por apenas sete real, nos melhores camelôs do ramo.
É nesse momento, o momento do amigo secreto, que as flores começam a desabrochar, com toda sua graça e delicadeza. Flashes fotográficos parecem estar todos voltados pra você, e você come sua picanha com a sensação de estar apertando as mãos do Kofi Annan. Os beijinhos de antes viram abraços calorosos, os copos começam a secar mais rápido, e a gritaria começa. Agora, além de abstrair o espetáculo de luzes, cores e tipos humanos, você precisa abstrair também a euforia ensurdecedora de gargalhadas, berros e palmas. Numa festa de confraternização de fim de ano tudo é engraçado, divertido e emocionante. Coraçõezinhos de frango e pão de alho à vontade, enquanto o chefe não chega e o almoço não começa.
Você se identifica, de certa forma, com a ala evangélica daquelas turmas – e todas as turmas têm a ala evangélica. Bebendo guaraná Antarctica com aqueles sorrisos amarelos e com aqueles cabelos longos, parecem compartilhar com você o anúncio da indigestão vindoura. Estão sofrendo, como você, e procuram agarrar-se à sua fé fazendo aquelas oraçõezinhas de 17 minutos, em silêncio, com o cotovelo esquerdo apoiado à mesa, o gesto contrito do polegar e do indicador segurando o nariz, agradecendo pela benção da comida. Então os garçons servem o grosso: a picanha e a maminha. Você, em sua reles insignificância de cliente solitário, recebe o que restou de cada espeto, de cada corte. E, como quem corta o braço de um inimigo no front, num só golpe o churrasqueiro lhe despejará no prato um pedaço de carne crua, equivalente a meia alcatra. Você não terá tempo de reclamar; ele já terá ido pegar mais carne para “os com crachá”.
Alguns copos de chope tombam, molhando as pernas de alguém que muito provavelmente não bebe, o que também causará urros, gargalhadas, palmas e aquele “êêê...” descontraído e cativante, próprio dos estádios de futebol e dos restaurantes. Os garçons começam a receber puxões nos braços e pedidos individuais por cortes preferidos. Colegas que não se cheiraram durante o ano já trocam declarações do tipo “saiba que eu ji conzidero bagaraio!”.
O ciclo então se repete. Mais copos vão cair, mais gritos vão ecoar e mais fotos panorâmicas vão ser tiradas nas cabeceiras das megamesas. Muitos CDs, de todos os estilos - pagode - serão trocados. Todos discordarão da conta e reclamarão da carne, mas o importante terá sido a descoberta do amor incondicional à empresa e aos colegas, a paz na terra, o ecumenismo entre crentes e bêbados, pagodeiros e roqueiros, puxa-sacos e estagiários, secretárias gostosas e velhas invejosas.
É tarde de segunda-feira, e muitas confraternizações de final de ano ainda vão acontecer. Proteja-se.