Maria da Conceição viajava de táxi-lotação pela feira da Panair, sábado de manhã. Levou um tiro no olho, num confronto entre traficantes da Colônia Oliveira Machado. Foi levada ao Serviço de Pronto Atendimento da Zona Sul. Duas horas depois, sem atendimento, foi mandada para o Getúlio Vargas para fazer avaliação neurológica. No fim da tarde, sem avaliação neurológica, Maria foi mandada para o 28 de Agosto, onde recebeu sutura no olho furado. Com a bala na cabeça, foi mandada novamente para o Getúlio Vargas, onde ficou até domingo no corredor, sem atendimento.
A vários milhares de reais de distância dali, num sarau de início de noite, membros da nobreza local se reuniam no décimo segundo andar do Tropical Flat, na borda do Rio Negro. Discutiam a Direita e a Esquerda. Uns, entre uma carreira e outra, estavam com o governo do PT, que é de esquerda. Outros, estavam contra, porque quem está no poder é sempre direita. Filosoficamente, direitistas e esquerdistas confundiam-se, fazendo alusão à polarização americana. Hitlers, Mussolinis, Bushes e Tsetungs foram citados, e precisavam parar nalguma prateleira de livros, malmente organizados em correntes de pensamento e biografias. O uísque levantava o tom, a mesa de centro tinha salgadinhos e maços de Carlton empilhados. Um pires passava de mão em mão, outros preferiam maconha de cachimbo. Entre direita e esquerda, todos foram classificados – à exceção de Heloísa, esquerdista que fazia oposição à esquerda -, mas as posições eram muito voláteis, e o tabuleiro imaginário de War ia sendo reorganizado, conforme o pires rodava e o Johnny Walker continuava caminhando pelas pedras do gelo turvo nos copos.
"Romarinho", o provável autor do disparo, estava em casa, anotando o pedido de um cliente da Ponta Negra. Só Maria da Conceição não tinha essas aflições políticas e ideológicas. Foi declarada morta, às 23:12 de domingo. Uma bala lhe varara o olho pela esquerda, mas estava alojada no muro que divide a fala e a coordenação motora. Havia controvérsia. Alguns atestariam que sua bala era de centro-esquerda.
Ficção baseada em não-ficção