Quem sabe - não duvide - um dia nosso festival seja algo assim:
Enfeitiçada pela magia de vários pajés, a tribo se vê cercada por feiticeiros e suas pirogas de cabine-dupla, adesivadas com a carranca do cacique. Os feiticeiros, dotados de super-poderes, hipnotizam os canoeiros, os macanudos dos rios, e os convencem a transportar a tribo, em transe, para a festa. Feiticeiros em outra frente transformam zeros em oitos, oitos em zeros, e exibem os índices maquiados do cacique à indiada. Música etérea, clima de sedução, velas acesas na galera, em perfeita sincronia de rostos e braços. Batucadas e marujadas psicodélicas, levando a tribo ao Nirvana. Jurados, convocados da platéia em última hora, arrepiados, vão às lágrimas. No momento da redenção, luzes ofuscantes e sinfonias corais enchem o bumbódromo, na apoteose do primeiro ato.
A tribo dorme, cansada, sem forças. Os feiticeiros correm aos vestiários, trocam roupa e tiram máscaras. Dali, tudo volta ao normal. Mulheres cuidando dos curumins e do beiju, homens caçando e pescando o sustento diário, enquanto o cacique, seus feiticeiros e os chefes de tribo vivem em harmonia, em porres de aluá, pegando, na escuridão da madrugada na floresta, suas pirogas de cabine-dupla, para enfeitiçar cunhantãs, a esmo, nas beiras dos igarapés.
Bocejos nas cabines dos jurados. Então, na escuridão da noite, uma grande zoada se ouve. Espantada, a tribo se esconde nos cantos das ocas. A terra levanta, em poeira, do chão. Enormes jacintas, libélulas pretas, surgem nos céus, envoltas em ventos e luzes tremendos, trazendo a ira de Tupã. O terror se instala, os apresentadores gritam “Olha que espetáculo, senhores jurados!!! São as jacintas de Tupã!!! Esse é o item número 27, senhores jurados!!! Que maravilha, que maraviiiiiilhaaaa!!!”. Aterrorizada, a tribo vê as jacintas cuspindo feiticeiros do Mal, vestidos em preto, com os rostos cobertos, que escorregam por cordas até as super-ocas dos feiticeiros do Bem. Sem acreditar, a tribo se entreolha, vê seus feiticeiros sendo levados, cabisbaixos, escondendo os rostos e, coletivamente, se esquece do feitiço que aqueles homens lhes haviam infligido. Então o cacique se vê só, e o Mal parece reinar. Feiticeiros fogem das garras das jacintas e dos guerreiros de colete preto, e são marcados em suas testas, como profetizou João no Apocalipse. Suas testas não trazem seu número, mas a palavra “Indiciado”.
Só que Tupã é Amor, e se compadece da tribo e de seu cacique. Na forma de pajés capazes de fazer prodígios, seu poder prevalece, e as jacintas pousam, os guerreiros de colete preto somem e as amarras são soltas, em meio à escuridão da madrugada na floresta. A tribo dorme, sem saber que seus feiticeiros já estão livres, correndo para adesivar novamente as pirogas. Dali a alguns tempos, novamente do colo do cacique, sairão para enfeitiçar o povo. Nova apoteose, fogos, luzes e cores, muitas cores. O povo volta à alegria. O boi preferido do patrão é sacrificado, mas tanto faz, há muitos bois preferidos. Todos dançam, comemorando a volta de seus chefes. Com novas máscaras, cobrindo suas testas, eles irão mais uma vez deixar a tribo em transe, e a vida na tribo será, de sempre a sempre, uma eterna espera pelos ventos e tremores de Tupã, que passaram do terror ao folclore. Sua ira não os assusta mais, pois sabem de sua misericórdia. Olhos para o alto, danças e cantos, à espera, novamente, das jacintas de Tupã.
Elas vão voltar, pois os feiticeiros já correram para os vestiários e novas pirogas e super-ocas estão sendo construídas. Vai ser bonito, vai ser bonito.
Com o perdão do texto longo. Afinal, são 3 horas de festa, pessoal.