terça-feira, janeiro 11, 2005

A honra, antes e depois da perda.

Assisti, enfim, a Fahrenheit 9/11, do mega-chato (mesmo) Michael Moore. Depois de meses lendo e ouvindo a respeito do documentário de maior sucesso da história cinematográfica americana. Sabedor dos defeitos de seu autor, das críticas que o filme recebeu e de seu propósito fracassado de contribuir para a queda de Jesus W. Christ, o assisti, meio melancólico e cético. Esperei o documentário viciado que alardearam, a parcialidade e a panfletagem democrata escancarada. E vi tudo isso, num filme extremamente bem editado e bem guiado, o que, para um documentário, não é exatamente um elogio.

Mas vi, como tantos viram, o extremo da hipocrisia no qual a sociedade americana se entrincheirou. E não constato isso como um brasileiro (portanto quase um antiamericano de nascença) que odeia os yankees. Não, levo uma vida até bem americana. Assisto às sitcoms e aos filmes deles, ouço as músicas deles e uso as roupas deles. Os admiro pelo que sempre foram, um país empreendedor e dinâmico, sem frescuras, sem grandes pompas e solenidades.

Mas Fahrenheit contribui, assim mesmo, meio cheio de cartazes e partidarismo, para retratar o americano de verdade. Não o negociador, o acionista, o CEO, o âncora de tevê cheio de habilidades. Não vi celebridades – a não ser Britney Spears, injustamente incluída como ícone da babaquice e da ignorância formadora de opiniões. Não digo isso com ironia. Michael Moore, mala que é, usa o expediente desnecessário e tolo de "desconstruir" os produtos de massa dos incautos. Panfletário e pretensioso demais.

Mas é a hipocrisia humana (não apenas americana) a grande vedete do filme. São os soldados, dentro dos tanques, matando seres verdes através dum visor infravermelho ao som de heavy metal, que mostram o pior. Gente que diz não entender por que o Iraque os odeia. É na guerra que vemos mais claramente o fator humano, logo bizarro, da guerra. O americano é o garoto mimado do condomínio de luxo, que ganhou no Natal um fuzil de última geração, e que está procurando ação, algo que combine com seus discos de black metal. O americano precisa de adrenalina, de trilha sonora, de um empurrãozinho de tudo o que o cercou durante a vida. Para torturar gatinhos e infernizar a vida do filho do porteiro o garoto do condomínio precisa estar alto, quase em transe. Sabe os russos, os colombianos, os vietcongues e os terroristas dos filmes, sempre cruéis, arrogantes e impiedosos com o mocinho dos filmes, até serem mortos? Esquece, eles não existem. Nesse mundo, my fellow, não há mocinho.

Michael Moore mostra a mulher americana comum, patriota, gorda e religiosa, mandando a família para as guerras ao longo da vida, crendo, hipócrita que é, que sua nação é a Escolhida. Hipócrita, porque manda seus filhos ao front para que eles fujam do desemprego de Flynt, sua cidadezinha modorrenta, de gente balofa, semi-analfabeta e pobre (a cidade natal do diretor), mas crente em Deus-Pai.

E eles, os soldados, são hipócritas, não porque americanos, mas porque humanos, mal-criados dentro de seu condomínio, com seu vídeo game, seus Doritos e seus discos de Marilyn Manson. Aguardam, com ansiedade, o começo da ação, loucos para detonar os "ali babás", matar todo mundo, zerar o jogo e voltar pra casa. Até ali estão orgulhosos em defender a pátria. Depois de umas pernas amputadas e uns estilhaços pelo corpo, viram-se contra o pai, como quem diz "Pô, pai! Não gostei desse jogo não!". São os donos da bola, e não sabem perder. São a nação da guerra, mas não sabem lutar, apenas jogar. Como garotos de condomínio, adoecem por qualquer garoa, não podem andar descalços nem tomar sereno. Já passaram por isso décadas atrás, e estão de novo chorando no meio do campinho de terra batida, reclamando das pernadas e dos dribles dos boleiros da periferia. Confesso, senti prazer no desolamento daqueles valorosos recrutas.

Mas isso não é o fim. Pensar nisso, vê-los assim, tão de perto, é triste, mas reconfortante. Saber que mais uma americana precisou perder seu filho para abrir os olhos tem seu lado bom. Essa não manda mais ninguém da família para a guerra. Ver que o americano caindo na real é muito, mas muito bom. Dá uma sensação de justiça, sabe? Tenho prazer em ver a hipocrisia recolhendo sua bandeira da frente do quintal, o patriotismo (sempre, sempre imbecil) caindo com a notícia da perda. Há o preço, triste, a pagar, mas a lição entra na cabeça que é uma beleza. O mundo ficaria em paz por séculos se cada americano perdesse um filho em combate. A América ficaria chata de tão zen.

O americano precisa perder para deixar de ser hipócrita. Precisa ser mutilado e humilhado, como foi no Vietnã, para poder sair à rua, de cadeira de rodas, contra suas guerras mentirosas. Precisa sentir a dor do luto. Precisa ver, em frente à tevê, com um balde de frango frito no colo, que seus pimpolhos estão morrendo, pra poder começar a desaprovar seus governos. A morte é o mais amargo e o mais eficaz dos remédios para o mal da hipocrisia americana. Bush é coadjuvante nesse filme. Pra mim o Oscar vai para a Hipocrisia. Hipocrisia que também ele, Michael Moore, mostra, tentando nos fazer achar que a sociedade americana não sabe o que lhe fazem. Hipocrisia de tentar nos fazer acreditar que o americano é lutador, honrado e fiel à pátria. Não é, como ninguém é no mundo, quando pego de surpresa pela realidade do campinho de terra batida da periferia.

Numa guerra perdida ninguém tem pátria, só sequelas e reclamações.