Imagine você a final do Brasileirão: durante o primeiro tempo, palmeirenses e sãopaulinos trocam carrinhos, cotoveladas e cuspidas. Cartões amarelos às cuias, briga entre torcidas organizadas, muita tensão e muito policiamento. O juiz apita o fim da primeira metade do jogo, e então... um enorme palco é montado no centro do Pacaembu, enquanto animadoras de torcida (aquelas cheerleaders à americana) chacoalham seus pompons, esfuziantes. Quando começa o show do half-time, trechos da Paixão de Cristo são encenados, junto à recriação de Caim e Abel e do Grande Dilúvio. No palco, um bispo católico, devoto, ortodoxo, comanda uma pregação inflamada sobre os valores morais ensinados pela Bíblia Sagrada, enquanto motoboys da Mancha Verde abraçam, envergonhados, auxiliares de pedreiro da Gaviões da Fiel...
Improvável? No Brasil, talvez. Mas Ned Flanders, tradicional coadjuvante do seriado Os Simpsons, está na crista da onda desde que os defensores dos seus valores passaram a ocupar cargos poderosos da nação americana. Al Jean, produtor executivo do seriado, afirma que a linha dos criadores sempre foi satirizar quem está no poder, e agora a turma de Flanders é quem manda. Numa insuspeita união de forças, Flanders e Homer organizam, juntos, o show do intervalo do Superbowl. Cansado de ver a sujeira dominar o mundo da tevê de sua nação, Flanders decide agir. E é aí, já nessa atitude de ter atitude, que começa a sátira.
Ao revelar que tinha 60 anos de idade, Ned atribuiu sua aparência jovem à vida regrada, à mastigação pausada e às doses diárias da “vitamina Igreja”. Flanders parece ter decidido entrar no showbiz depois de assistir, estarrecido, Janet Jackson exibir o seio em pleno intervalo do Superbowl. O artigo da Associated Press chama a atenção do leitor para a ascenção divina de Ned. O jornalista Kent Brockman diz que os telespectadores americanos estão hoje irritados com os shows de intervalo, regados a religião e decência.
Não é verdade. Talvez poucos americanos hoje admitam, mas são – mesmo que satiricamente - genuinamente representados pelos Neds Flanders da vida real. Ou farão os críticos da Doutrina Bush como tantos paulistanos, por exemplo, que atribuem vitórias de políticos notoriamente corruptos aos migrantes nordestinos?
O artigo termina perguntando o que será dos cidadãos americanos que diferem do ponto de vista daqueles que governam o país. Graças aos Simpsons – e a Deus, claro! – pelo menos por enquanto resta rir.