terça-feira, fevereiro 22, 2005

Montagem, do paraíso

O radinho grunhiu, rouco, o noticiário da Rádio Difusora. Músculos ainda frios mexeram-se, corpos cansados, quase inertes. Jackson arrastou as sandálias pelo chão sujo de terra, acordando Lupi debaixo do assoalho da casa suspensa. Funcionários da obra ao lado chegavam em grupos silenciosos de 3 ou 4. Encheu rapidamente o bule e os baldes que lhe banhariam à noite, quando chegasse. No ônibus da empresa, tentava dormir enquanto o mesmo noticiário ainda desfilava os boletins dos pronto-socorros. Meninas barrigudas liam os próximos capítulos das novelas nas revistas de 1,99. Meninos dormiam, com fones nos ouvidos e fardas no colo, aguardando a sirene que os levaria ao pastel folhado do café.

Não tinha um filho que pudesse beijar como se fosse o único. Havia meses não namorava, não podia também amar como se fosse a última vez. O que podia era limpar os dentes com a língua, tirar a gordura dos lábios e pôr o protetor auricular. Fingiu alongar-se na ginástica de zumbis infelizes e tomou seu posto. Montava DVDs como se fosse máquina, circuito com circuito num desenho lógico. Pensava enquanto encaixava pecinhas, e gostava daquele trabalho por isso. Pensava em sua vida, sem ninguém, sem nada, só Lupi, seu rádio fabricado pela concorrência e seu quarto úmido. Comeu feijão e arroz como se fosse príncipe e sentou pra descansar como se fosse sábado. Seus olhos, ainda embotados de sílica e lágrimas, se fecharam naquele mar de corpos do pátio.

Ali, enquanto agonizava no passeio público, Jackson esperava por uma redenção que não viria, isso sabia. Via, resignado, sua condição. Não sairia dali. E não amaria pela última vez. E não beijaria o filho pródigo. Aproveitava os últimos minutos da agonia diária daquele pátio, esperando pela próxima sirene. Até que Lupi e a Rádio Difusora lhe acolhessem em casa, com um balde de água fria no banheiro. Até que, no dia seguinte, pudesse comer feijão e arroz como se fosse príncipe. Até que um dia – sonhava – pudesse flutuar no ar como se fosse pássaro. Até que morresse na contra-mão, atrapalhando o tráfego, num desespero que não sabia sentir.