sexta-feira, fevereiro 04, 2005

Minha porção Cameron Crowe

Carlos André fora um garoto tímido. Na década de 80 envelheceu dos 10 aos 18, e viu muita coisa. Apenas viu. Claro, não era inferior ao Kiko, xará seu. Mas Carlos era tímido, e se alguma época foi especialmente mortal para os meninos tímidos, foi aquela, os 80.

Kiko falava engraçado, e Carlos, inconscientemente, o imitava. Kiko sempre tivera tudo, e Carlos, cruel como só as crianças podem ser, já obrigara a mãe, funcionária pública e leoa nas horas vagas, a comprar desde Reeboks importados até bicicletas de alumínio, tudo pra fazer parte da roda do Kiko. Mas não dava. Kiko já dirigia desde os 10 o carro da mãe, um Monza Classic, e o carrão do pai, um Escort XR3 com guidão acolchoado e faróis de neblina. Um espetáculo. Carlos já tentara roubar o Chevette hatch do namorado da mãe, mas o motor a álcool do carro frio o deixara na mesma situação da moça de Desejo de Matar 3, cercada por malfazejos num estacionamento subterrâneo vazio, sem nenhum Paul Kersey para ajudar.

As festas, sempre na casa do Kiko, eram as melhores, e passaram rapidamente dos campeonatos de River Raid no Atari às festinhas na garagem, iluminada com luz negra e lâmpadas estroboscópicas. Naquelas festas não podiam entrar o Somewhere in Time, do Iron Maiden, nem qualquer coisa de Marillion, que eram coisas de macho. “Silvia” (piranha!), do Camisa de Vênus até rolava, mas no final. Era tempo de Rádio Pirata, e as meninas sonhavam ser escolhidas pelo Kiko para dançar London, London. Via-se muito Footloose, mas ninguém queria ser Kevin Bacon. Sentados em cadeiras de abrir, encostadas nas paredes da garagem, os meninos escolhiam as meninas. Os beijos eram todos belos, românticos, e Carlos apenas assistia, pensando na Daniela, sua vizinha, e na Luciana Vendramini, que dava a Paulo Ricardo aquela aura de divindade, “O Cara”.

Carlos era apaixonado por Daniela, que não era a menina mais popular ou cobiçada do bairro, o que destoa do clichê dessas histórias. Seu amor não era puro, poético. Era físico mesmo. Ele dormia e acordava pensando nas pernas dela, sempre à mostra nos shorts. Já àquela altura, lembrando daquilo tudo tantos anos depois, era capaz de lembrar o perfume dela.

Agora Carlos era casado, e outras paixões e amores já havia vivido. Daniela também era casada, morava numa casa grande com o marido e três filhos. Nunca mais se viram. Ele lembrava também do Kiko e suas camisetas Cristal Graffiti e Píer, as mochilas Quebra-Mar e daquele disco do Ultraje a Rigor, cujo logotipo tremia na capa do vinil. Abriu a porta do guarda-roupa e viu, empilhados, o mesmo RPM, The Smiths, New Model Army e até um Ritchie, que ouvia escondido, entre um Exploited e um AC/DC. Encontrou fitas cassete do Léo Jaime e, puta merda, a trilha de Karate Kid, com, puta merda, Peter Cetera. Lembrou de quase tudo, desde Flashdance, passando pela Faces, onde nunca estivera por não saber dançar nem paquerar, chegando até os filmes pornô que a galera assistia quando os pais de alguém viajavam. Lembrou de tudo com a nitidez que um perfume, uma música ou um lugar trazem. Lembrou que não mudara muito, que ainda era tímido, anticarismático. Lembrou da Daniela e de todas as outras paixões, fortes e duradouras como um tornado. Ainda não sabia chamar a atenção, só conseguia guardar, na lembrança daquele All-Star (o Converse!) e daquelas fitas TDK empoeiradas, as imagens da melhor e pior época de sua vida. Sorriu, percebendo o clichê que ele era: o garoto ruim de papo e bom de redação, observador e solitário, lembrando o que vira, e não o que vivera.

Salvou o texto e pegou as chaves do carro.