terça-feira, abril 26, 2005

E Deus castigou Adão. Com o Trabalho.


Sem que tivesse grandes argumentos que apoiassem meu desapego pelo trabalho, já debati com grandes e exemplares trabalhadores e entrepreneurs deste nosso mundinho sobre a grandeza e a beleza do trabalho, que apesar de lindo e dignificante é tão facultativo quanto o alistamento militar. Sempre fui, ainda que não-praticante, um entusiasta do ócio produtivo. Nada contra o capitalismo, a propriedade privada ou o acúmulo de riqueza. Só não concordo muito que deva me encaixar nesse sistema (oh, a palavra "sistema"!) de sobrevivência, em que somos obrigados ao trabalho porque somos obrigados ao consumo.

Faz enorme sucesso na França o documentário "Attention: danger travail", traduzido para "Atenção: perigo trabalho", uma coletânea de entrevistas com pessoas que resolveram parar de trabalhar para viver melhor. São pessoas de ambos os sexos e de todas as faixas etárias que escolheram não participar da enorme engrenagem que move a sociedade baseada no consumo. Claro, para isso precisaram também escolher o abandono dessa sociedade de consumo. Em outras palavras, optaram por deixar de trabalhar, e pra isso abriram mão dos confortos obrigatórios trazidos pelo trabalho. Na França isso é mais fácil, pois o seguro-desemprego ajuda a viver. Depois dele o Estado paga uma espécie de salário mínimo, o RMI, com piso de 389,10 euros, que pode ser aumentado se houver dependentes. Um casal com dois filhos, por exemplo, ganha 817,12 euros.

Esses desertores têm mais tempo para leituras, sestas, museus, e descobrem o prazer de uma vida que não conheciam. O que é lógico. Engana-se quem pensa que essas pessoas escolheram não fazer nada. Pelo contrário, há uma infinidade de coisas a fazer em vez de trabalhar. Ou nunca nos percebemos prisioneiros do ciclo vicioso trabalho-salário-contas-trabalho-salário-contas? Quantas vezes você usou a piscina pela qual pelejou tanto no seu trabalho amado? Vivemos uma guerra eterna contra nós mesmos. Dizemos com enorme facilidade que amamos o que fazemos, que o trabalho dignifica a vida e blá-blá-blá. Balela. O que dignifica a existência é ter dinheiro no bolso, ponto. É uma pena que, para consegui-lo, a única forma lícita seja o trabalho. Por isso toleramos, suportamos o trabalho. Não fosse assim os bares não estariam lotados às sextas-feiras, numa prova clara de que, depois de cinco dias fazendo o que dizemos amar tanto, precisamos de remédio. Como pode alguém tão apaixonado pelo que faz chegar à mesa, afrouxar a gravata e suspirar dizendo "que semana pesada, graças a Deus acabou!".

Eu nunca gostei de trabalhar. Durante todas as tardes quis dormir, ler, passear, viajar. E sei que você concorda comigo, por mais que nem saiba que concorda. Quantos amantes do trabalho você conhece? Daqueles que trocam um feriado, um sábado, uma noite de sexta-feira por mais algumas horas fazendo o que amam, ou seja, trabalhar? Todos odiamos a segunda-feira porque é dia de trabalho. Todos amamos a sexta pelo contrário. Veja a legião de candidatos nos concursos públicos, veja a legião de apostadores da Sena. Gostamos de trabalhar ou de ter dinheiro? Come on! Só não podemos dizer isso a sério, como se os desabafos cansados precisassem ficar apenas no desabafo. Como você veria alguém que escolheu não trabalhar?

Mas eu trabalho, infelizmente. Não ligo se você diz que eu "devia dar graças a Deus por trabalhar, isso sim". Na verdade você quer dizer que eu "devia dar graças a Deus por receber dinheiro de alguém em troca de uns favores diários". Preciso pagar as contas, comer, vestir, sobreviver. Só e somente por isso. Você também, amigo apaixonado pelo que faz. Prove que você ama o que faz: abdique do seu salário, trabalhe de graça. Aí sim, eu vou acreditar em você.