terça-feira, agosto 03, 2004

Meia-noite no Jardim do Mal

Uma campanha publicitária, provavelmente de algum órgão ligado ao governo, mostra as histórias de sucesso e superação de alguns sobreviventes de tragédias pessoais como Lars Grael e Herbert Viana. Há tempos eu não via filmes tão tocantes e bem feitos. Talvez devesse me orgulhar da habilidade dos publicitários brasileiros, que devem ganhar mais dinheiro nessa Era Petista do que as empreiteiras da cartilha amarelada dos corruptos de sempre. Os filmes dizem, ao som de Raul Seixas, que o melhor do Brasil é o brasileiro. Pois pra mim o pior do Brasil é o brasileiro. Busco até hoje, entre arquivos Powerpoint com gatinhos e nenês, um que seja mais ingênuo do que um que recebi uma dúzia de vezes que, letra por letra, me dizia que o brasileiro deve sim, se orgulhar do seu país. Damos aula de tecnologia eleitoral, exportamos aviões para o Primeiro Mundo e temos um dos escritores mais lidos do mundo, o maior velejador da Antártica, os melhores jogadores de futebol, o melhor programa de saúde contra a AIDS, entre outras coisas.

Mas sei que os programadores da Microsoft não prepararam seu Powerpoint para suportar a quantidade de slides que eu faria se decidisse dizer porque não devo me orgulhar. Em vez de pequerruchos fofinhos e gatinhos abraçados a cãezinhos, eu buscaria as fotos dos jornais e revistas, eu falaria das obras dos patifes colocados no poder por nossa tecnologia eleitoral for export, eu mostraria mãezinhas abraçadas a filhinhos barrigudos, sem sorrisos porque sem dentes, esperando o Fome Zero chegar. Eu mostraria os sorrisos dos Malufs e Nayas, dizendo "não tenho nada a declarar" e indo embora; eu falaria de Roraima, onde cada casa tem um funcionário público fantasma, de São Paulo, onde notórios ladrões estão no páreo pela prefeitura, de Manaus, onde se oferece 11% de aumento aos servidores em troca de votos e isso ninguém chama de compra de voto. Eu falaria do presidente mais celebrado da história recente do país, que vive às visitas a ditadores de países miseráveis, desfilando, ao som de funk brasileiro, em Rolls-Royces prateados, rodeados por milhares de esfomeados. Eu colocaria todos os zeros dos 2.000.000.000 de reais que foram roubados no Banestado em fonte 32 negritada, caindo zero por zero nas telas. Não mostraria o Zero que os escravos do Pará recebem como salário porque isso não ocuparia um slide inteiro. Eu mostraria os velhos sendo assaltados por operadoras de Planos de Saúde e empresas de transporte; velhos sentados, durante noites numa fila, não para serem consultados, mas para vender o lugar e levar sustento para os filhos desempregados; eu lembraria que 9 pessoas ligadas a Sérgio Naya já receberam indenizações do governo se passando por vítimas, enquanto as vítimas reais se humilhavam, de madrugada, numa agência bancária. Eu mostraria todos os ladrões sendo soltos, sempre de madrugada, por juízes de Direito e mostraria os policiais matando o povo a esmo. Eu levaria o Powerpoint ao limite de sua capacidade, com slides amplamente documentados, gráficos, dados, fotos e - claro - música de fundo. Mas esse é o tipo do arquivo que as caixas postais não suportam. Não vou me arriscar a receber alguma mensagem do tipo "Não há memória suficiente para essa operação". Vou simplesmente dormir e sonhar com o Taiti.

Há quem diga que essas não são exclusividades do brasileiro. Pois sim. Mas, ainda assim, ter orgulho é exclusividade do brasileiro.

Herbert Viana e Lars Grael não sobreviveram porque são brasileiros. Sobreviveram apesar de serem brasileiros. O brasileiro não precisa de auto-estima, precisa de vergonha na cara.