segunda-feira, agosto 09, 2004

Porque o círculo é a perfeição geométrica



No início dos anos 70, um doutor em economia pela Harvard, ex-fuzileiro naval e homem de confiança do Pentágono chamado Daniel Ellsberg, descobriu um documento altamente secreto, produzido pelo alto escalão do governo, em que os falcões da guerra traçavam a história dos trinta anos em que os Estados Unidos estiveram envolvidos com o Vietnã. Nesse documento descobriu que nada menos que 4 presidentes americanos vinham sustentando uma fraude contra o povo americano e principalmente contra o povo vietnamita. Muita mentira foi contada aos americanos, que provam, ao longo das décadas, que a linha que divide o patriotismo e a imbecilidade é praticamente nula. Ellsberg fez cópias do documento, com 7 mil páginas, e o divulgou no The New York Times e no The Washington Post. Desencadeou a maior caçada humana da história americana, foi acusado de traição à pátria e de louco, e os dois jornais foram impedidos de continuar publicando o documento.

No ano passado, o trio de música country Dixie Chicks, que liderava as paradas da Billboard e ganhava mais discos de platina do que a Rede Amazônica já ganhou prêmios Top of Mind, caiu em desgraça. Num show em Londres, uma de suas integrantes usou o microfone para falar mal do presidente Bush. Foram tachadas de traidoras, as vendas despencaram e shows pelo país inteiro foram cancelados. Receberam ameaças de morte de todos os cantos do país, tiveram sua vida investigada e estavam correndo risco de responder a processo. Revistas americanas fizeram montagens em que apareciam abraçadas a Saddam Hussein.

Depois de 23 anos, de 60 mil americanos mortos e de 1,5 milhão de vietnamitas trucidados por Napalm e Agente Mostarda, os americanos se tocaram da merda e se retiraram do atoleiro do Vietnã. Ellsberg foi absolvido pelos crimes de traição e espionagem e os jornais foram liberados pela Primeira Emenda. Nixon caiu com o Watergate e o povo foi pras ruas, fumar maconha, fazer amor e sinais de “V” com os dedos.

Mas e se outra bomba atômica tivesse sido usada pra acabar com a guerra? E se os documentos nunca tivessem vindo a público? E se alguém tivesse “descoberto” algum desvio de personalidade de Ellsberg no consultório de seu psicólogo, que foi arrombado e revirado pelos homens do governo? E se deter o Mal tivesse sido mais fácil? E se as mentiras dos governos levassem a guerras fáceis e limpas, sem baixas americanas? As mentiras teriam importância?

Os americanos nunca foram contra qualquer guerra. Os americanos adoram seu país, e por ele adoram ser enganados por seus governantes. Desde que persuadidos, mandam filhos e netos, orgulhosamente, para as linhas de frente. Adoram guerra, porque nelas são convencidos e lembrados que sempre são o Bem, e isso é muito bom. Qualquer guerra é justa, necessária, correta, desde que a vençam. O Vietnã e o Iraque foram revezes com os quais eles não contavam. Os loirinhos começaram a morrer, e esse foi o único problema. No relatório descoberto por Ellsberg não havia sequer uma linha sobre o genocídio praticado pelos loirinhos, pelos presidentes, pelos secretários de defesa. A guerra do Iraque tinha o apoio da maior parte da população. Hoje, depois de mil loirinhos mortos, são todos contra. E assim foi, é e sempre será. Não importa quantos amarelos morreram, de que forma eles morreram, com base em que mentiras eles foram assassinados. Assim com os iraquianos, afegãos e coreanos.

Impressionante como a história e os erros se repetem. A guerra do Vietnã foi declarada porque um navio americano foi alvejado por navios norte-vietnamitas no Golfo de Tonquim em 64. Mentira. E essa mentira foi usada pelo presidente Lyndon Johnson como motivo para a guerra, a mais longa da América. A América estava ameaçada pelo Mal, que naquela época era o Comunismo. Os documentos foram forjados pelo Pentágono e pela Casa Branca. Até a figura do cientista que põe a boca no trombone foi personagem que se repetiu. David Kelly, inglês que participou das equipes da ONU na busca de armas no Iraque, procurou a BBC para denunciar a manipulação e as mentiras do seu governo. A diferença é que se matou, enquanto Ellsberg ainda hoje faz discursos em livrarias, traçando esse paralelo entre as duas guerras. David Kelly denunciou as mentiras da guerra, como Ellsberg. O caçado foi ele, assim como Ellsberg. O traidor foi ele, assim como Ellsberg.

Ellsberg foi preso em 26 de março deste ano, porque fazia protesto em frente à Casa Branca contra a guerra no Iraque. Ah, junto com ele foram algemadas também duas ganhadoras do Prêmio Nobel da Paz, Mairead Corrigan Maguire e Jody Williams. Bush não estava na Casa Branca. Estava na Flórida, claro. Reunido com a cúpula militar, claro.

Perdão pelo post longo, perdão por não falar de Lulas, de Amazoninos e de Dirceus. É muito mais fácil falar de um filme hollywoodiano, que todos viram, do que de um documentário iraniano.

A história de Daniel Ellsberg está aqui, aqui e aqui.

E aqui um artigo interessantíssimo.

A maior parte da história está contada em "Segredos Do Pentágono" ("The Pentagon Papers"), estrelado por James Spader, nas locadoras.

A história de David Kelly está aqui.