No último dia 7 de abril um homem alto e magro foi encontrado vagando pelas ruas de Sheerness, na ilha de Sheppey, ao sudeste da Inglaterra. Vestia paletó e gravata finos, que estavam encharcados e pingavam. Depois de levado ao Medway Maritime Hospital, foi examinado. Até aquele momento não pronunciara uma palavra sequer, e não respondia às perguntas e estímulos dos médicos, apesar de estar fisicamente bem. A equipe do hospital, que não conseguira encontrar qualquer etiqueta nas peças de suas roupas, então lhe deu lápis e papel, na esperança de que escrevesse seu nome. O homem, entre os 20 e os 30 anos, começou a desenhar. Alguns minutos depois havia desenhado detalhadamente um grande piano de cauda, e os médicos e enfermeiros não entendiam o porquê daquilo. O que poderiam fazer, então? Levaram-no até a capela do hospital e o puseram à frente do piano. Michael Camp, um dos assistentes sociais do hospital descreveu o que viu como “impressionante... ele tocou durante várias horas, sem parar”. As outras pessoas que presenciaram a cena também ficaram impressionadas com a beleza da música.
Desde que o Homem-piano (apelido que rapidamente lhe foi dado) foi encontrado, autoridades da Inglaterra têm se esforçado para encontrar alguém que o conheça, mas apesar da grande quantidade de ligações e emails recebidos, ninguém parece conhecer o pianista do mar. Orquestras foram contatadas por toda a Europa, mas nenhuma o reconheceu. Já se passaram seis semanas desde que foi encontrado, e o homem segue sem falar absolutamente nada. Intérpretes do leste europeu já tentaram ajudar, mas o homem é extremamente tímido e fica nervoso perto das pessoas. Seus únicos momentos de calma são ao piano. A equipe do hospital acredita que algumas das músicas que ele toca sejam originais seus, o que faria dele um compositor – uma nova pista para o mistério. A imprensa internacional inteira fala do assunto, se você não acredita neste Malfazejo. Cheque a CNN, o Times, a BBC, a ABC...
A imprensa britânica já compara o Homem-piano a David Helfgott, o pianista virtuose que sofreu um colapso enquanto tocava, interpretado em 1996 pelo ator Geoffrey Rush em Shine, mas eu discordo, e aqui aproveito para fazer um “O Malfazejo Recomenda”.
Em 1998 Giuseppe Tornatore (de Cinema Paradiso) dirigiu A Lenda de 1900, traduzida para o português como A Lenda do Pianista do Mar. O filme conta a história de Danny Boodmann T.D. Lemon Nineteen Hundred, ou simplesmente 1900. Isso mesmo, o nome dele é 1900. Interpretado por Tim Roth (de Cães de Aluguel e Pulp Fiction), 1900 é abandonado, recém-nascido, pelos pais dentro do Virginian, um navio que leva imigrantes para a América. Encontrado por um caldeireiro, 1900 é criado a partir daí dentro dos limites da sala de máquinas, tendo como sua família os trabalhadores do Virginian. Conforme cresce, 1900 começa a bisbilhotar os conveses superiores até que, no meio da noite, entra no salão de bailes e começa a tocar o grande piano de cauda de forma impressionante. A tripulação e os passageiros vão checar o que há e 1900 ouve que o que está fazendo é contra as regras. A partir daí começamos a nos apaixonar pelo personagem, que responde com um singelo “foda-se” a qualquer coisa ou pessoa de que não goste. A história é contada por Max, trompetista, que conhece 1900 quando este já tem 27 anos de idade, sem nunca ter saído do navio. Sem sucesso, Max passa anos tentando convencer 1900 a experimentar a terra firme. O lendário pianista só pensa melhor quando se apaixona por uma moça que vê no convés, o que rende uma das mais belas cenas de que lembro no cinema.
O filme de Tornatore é, para mim, uma obra-prima, como Cinema Paradiso. Com trilha de Ennio Morricone e um roteiro que amarra muito bem o enredo com a música, é emocionante, fascinante e inspirador. Com o talento de Tim Roth e Pruitt Taylor Vince (o excelente Max), Tornatore prova o visionário que é, com ângulos de câmera criativos e a mão que poucos têm para emocionar sem pieguice. Um filmaço, digno de fazer parte do acervo pessoal de qualquer pessoa. Assista e depois me diga se não estou certo.