sexta-feira, maio 20, 2005

Uma nação de cornos mansos


Estamos sendo provocados, testados ao limite, nos últimos dias, tenho certeza. A bizarrice que se tornou ser brasileiro está ficando insuportável, e acho que falta muito pouco para que até os intelectuais apolíticos de plantão se revoltem. Começo a assistir um Jornal Nacional crivado, feito um cachorro por carrapatos, de reportagens sobre CPI, corrupção nos correios, compra de votos pelos Garotinhos, prisões de prefeitos em Alagoas e fitas pornográficas em Rondônia. Não há mais notícias, não há mais fatos, só há o colapso moral e institucional em que parecemos ter caído. Mas o mais assustador é o silêncio, a resignação e a passividade com que o brasileiro, já meio anestesiado por sua própria história, ouve as notícias. Os boletos bancários, o dinheiro contado do ônibus, o restaurante a quilo mais barato, a junção de plástico que precisa ser trocada no encanamento do banheiro e o preço da gasolina tomam todo o tempo, a paciência e a atenção das pessoas, e ninguém parece enxergar a gravidade da própria situação. Vejo analistas políticos enxergando o lado bom do Brasil, comparando-nos aos argentinos, aos colombianos, aos bolivianos e aos equatorianos, todos passando por crises graves, com confrontos nas ruas, iminência de golpes de estado e etc., e não consigo concordar. O Brasil parece estar pior ainda, mas o pior é que não reage. Não tem panelaço, não tem apitaço, não tem greve nem barricada, não tem gritaria, não tem protesto na Praça da Sé, não tem nada.

Mas o Jornal é interrompido; meu fígado é salvo pelo gongo. Quando começo a acreditar em intervenção divina, como se Deus jogasse, penalizado, uma toalha branca no ringue, a meu favor, William Bonner anuncia 20 minutos de propaganda política, e eu paro novamente, procurando, em terror, as câmeras escondidas de uma pegadinha de mau gosto qualquer, produzida por algum programa da RedeTV. Então surgem Joaquim Roriz e Anthony Garotinho, e com eles a certeza de que estou no Mundo Bizarro, do Super-Homem ao contrário, do Tudo ao contrário. Garotinho, acusado de compra de votos em Campos, sem direitos políticos, fala ao Brasil como candidato à presidência, em programa salpicado por trabalhadores (capacete de operário e sorriso perfeito) sorrindo, fazendo sinal de positivo com o polegar, agricultores felizes, cercados de verdejantes plantações e crianças rechonchudas nos carrosséis dos parquinhos. A locução fala dos 40 anos do partido que “é o responsável pelo fortalecimento da democracia brasileira”, e lembro, pálido e meio tonto, da censura prévia de Joaquim Roriz ao Correio Brasiliense, por conta das denúncias de envolvimento do governador com grileiros de terras. O programa parece não acabar, mas preciso assistir, engolir, tomar de gute-gute até o fim. É meu dever, é nossa sina. Me nego à alienação, não por princípios, mas por incapacidade biológica; Não saber o que eles fazem é incômodo como estar sem tomar banho há dois dias.

Os jingles continuam, Garotinho fala mais, Roriz fala mais, todos falam mais. Mais brasileiros felizes aparecem, polegar em riste, pelos quatro cantos do país. Então tudo pára, e o Jornal volta. E então volta a reportagem, interrompida, sobre a perda de direitos políticos do casal Garotinho. Assim, bizarro assim, como se algo na Matrix brasileira tivesse pifado. Desligo a tevê e olho pela janela, procurando alguma fenda no céu, algum traço disforme das casas que me dê a certeza do bug, mas está tudo OK. Acendo meu cigarro e penso que o mais bizarro é o silêncio da rua, o desânimo das pessoas, parecendo aquelas hordas de torcedores saindo do Maracanã, em silêncio, aos 30 minutos do segundo tempo de uma goleada adversária. Estamos todos derrotados, não conseguimos mais sequer vaiar, muito menos reagir, gritar. Temos tanta coisa pra fazer, tanta conta pra pagar, que esquecemos de querer algo mais dessa triste bizarrice que se tornou ser brasileiro.