segunda-feira, maio 23, 2005
Você já v-v-viu?!
Era uma bela segunda-feira. Ruth foi trabalhar e, enquanto dirigia, sentiu algo diferente, coisa de mulher. Tudo estava igual, desde o mesmo noticiário sem notícias no rádio até os mesmos rostos no trânsito, mas Ruth sentia que aquele não seria um dia comum. Nutricionista sem grandes feitos ou emoções, estava ansiosa sobre a pequena entrevista que daria, ao vivo, para o jornal local. Assim que chegou ao escritório levou um susto. Seu Juarez, o porteiro, e Dona Conceição, do café, estavam gagos, completamente gagos. E não se incomodavam, falavam naturalmente seus “b-bom d-dia, Dona Ru-ru-th”. Ruth deu uma volta em torno do corpo, em câmera lenta, e viu gente gaguejando ao telefone, viu as fofoqueiras do bebedouro gaguejando sílabas e venenos, viu homens – gagos, claro - contando da pelada do sábado. Todos eram gagos, absolutamente todos. Quando ligou pra casa pra contar à filha adolescente o que estava presenciando, Jaqueline respondeu com um seco “E daí, m-m-m-mãe? Se todo m-mundo é ass-ass-ssim, qual o problema?”.
Então a repórter, aluna mediana do terceiro período de um mediano curso de Letras de uma faculdade mediana, chegou, de terninho verde-musgo e com um cinegrafista barrigudo a tiracolo. Ruth foi recebê-la e ajustar o ponto eletrônico na orelha. A repórter era gaga, e a voz do ponto repetia “o s-s-som está b-b-bom, d-dona Ru-ru-ruth?!”. Ruth ria por dentro, meio assustada. Foi ao ar às 12:18, bem entre a longa matéria sobre a feira de construção que a rede de tevê promovia em seu shopping e uma reportagem curta sobre os preparativos para a chegada do Papai Noel, em dezembro próximo, no mesmo shopping.
Então o inferno e o céu de Ruth começaram. Sentindo-se confiante e com a dicção completamente normal, falou, até demais, sobre leguminosas e carboidratos, feijão com arroz e sanduíches. Esse era o céu de Ruth. Mas a repórter, fora do quadro enquanto Ruth falava, esticou-se e sussurrou ao cinegrafista “m-meu Deus, Ra-ra-ra-fa, o que ess-essa m-mulher está f-fa-fazendo?!”, e Rafael, o cinegrafista barrigudo, dava de ombros, também confuso e deixando a imagem de Ruth tremer. Ruth ficou nervosa, perdeu o fio da meada, a linha de raciocínio. A repórter, desesperada, lhe disse “n-não, n-não tem p-p-p-problema...”, tentando tranqüilizá-la. Era o inferno de Ruth, que não conseguiu continuar a entrevista, interrompida às pressas por uma matéria pronta sobre uma palestra de auto-ajuda que seria apresentada no shopping da rede de tevê.
Depois daquilo, Ruth virou celebridade às avessas e foi até no programa do Jô. O Brasil inteiro ria dela, espalhando pela Internet o vídeo tosco de seu inferno particular. Pelas redes corporativas de email corriam correntes de arquivos MPEG e MP3, e funcionários de escritórios, nos corredores, nos bebedores e nas baias improdutivas repetiam aos colegas “Ei, j-j-j-á viste aq-aq- aquele v-vídeo da nut-nut-nut... ihhh...nutricionista que não gag-gag-gagueja?!”